7 de ago. de 2012

O Ócio Criativo


  • A sociedade industrial permitiu que milhões de pessoas agissem somente com o corpo, mas não lhes deixou a liberdade para expressar-se com a mente.
  • Na realidade, a sociedade industrial não só fez com que, para muitos, se tornasse inútil o cérebro como também fez com que somente algumas partes do corpo fossem utilizadas. Isto era diferente da sociedade rural na qual o camponês, para usar a enxada ou a pá, assim como o pescador para pescar, além de utilizar o corpo inteiro, usava talvez um pouco mais o cérebro.
  • Mais ou menos na metade do século XVIII nasce um novo movimento, o racionalismo, que confia na razão humana para a solução dos problemas, em contraposição a soluções através de um enfoque emotivo, religioso ou fatalista.
  • Nasce daquela mistura de cientificismo, racionalismo, ironia e auto-ironia que fez do séc. XVIII o “século das luzes”.
  • Indispensáveis a esta revolução serão as descobertas da eletricidade, da máquina a vapor e da organização taylorista, mas também a primazia da razão. O homem descobre que grande parte dos problemas tradicionalmente resolvidos de modo religioso ou fatalista podem, ao contrário, ser administrado racionalmente: seja o medo do temporal e do raio, seja a carestia, seja a ditadura.
  • A consciência de que foi toda sociedade que mudou só aflora, aqui e acolá, em torno de 1850. É então que se começa a falar não mais somente de indústrias, mas de “sociedade industrial”, e percebe-se a globalidade da mudança de época que acabou de acontecer.
  • A sociedade pós-industrial oferece uma nova liberdade: depois do corpo, liberta a alma.
  • Na sociedade industrial, o poder dependia da posse dos meios de produção (fábricas). Na sociedade pós-industrial, o poder depende da posse dos meios de ideação (laboratórios) e de informação (comunicação de massa).
  • Foi a indústria que separou o lar do trabalho, a vida das mulheres da vida dos homens, o cansaço da diversão. Foi com o advento da indústria que o trabalho assumiu uma importância desproporcionada, tornando-se a categoria dominante na vida humana, em relação à qual qualquer outra coisa – família, estudo, tempo livre - permaneceu subordinada.
  • Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca distinção entre o seu trabalho e o seu tempo livre, entre a sua educação e a sua recreação, entre o seu amor e a sua religião. Distingue uma coisa da outra com dificuldade. Almeja, simplesmente, a excelência em qualquer coisa que faça, deixando aos demais a tarefa de decidir se está trabalhando ou se divertindo.” (Pensamento Zen)
  • Portanto, toda organização, grande ou pequena, tende a ser conservadora, sofre de compulsão a repetição. Os otimistas veem nesse processo uma manifestação da learning organization. Eu vejo uma resistência às mudanças.
  • Estamos mais habituados a assistir a uma passeata dos trabalhadores do que a uma passeata de senhores bem de vida ou de empresários.
  • A maior exploração ainda diz respeito à matéria-prima. Quando a matéria-prima era o cobre, explorar significava compra-lo a baixo custo. Se é o trabalho, significa pagar pouco pelos braços que se compram. Se são ideias significa se apropriar dos frutos da criatividade dos outros ou ainda impedir que eles amadureçam.[...] É o que fazem, predominantemente, as empresas: mantém milhões de pessoas num regime de baixo nível das ideias, utilizam só as suas capacidades executivas, fazendo com que se envolvam de uma tal maneira com a burocracia, que elas acabam perdendo a capacidade de inventar e se tornam outros robôs.
  • É preciso não impedir o progresso, mas geri-lo de forma a criar uma felicidade mais difundida.
  • Por milhares de anos, a aristocracia social distinguia-se não pelo que fazia, mas pelo que não fazia. Quem pertencia à nobreza não devia trabalhar: para isso existiam os servos e empregados. Nós estamos atravessando uma passagem de época, da atividade física à atividade intelectual. Isto é, de um mundo explorado, bem conhecido, a um mundo do qual sabemos pouquíssimo.
  • Os etnólogos dizem que quando os peixinhos vermelhos, depois de passar meses num aquário, são liberados em pleno mar, continuam ainda por um certo tempo a nadar em círculos, como se estivessem dentro do aquário. Os seres humanos trabalham por duzentos anos dentro de uma fábrica ou dentro de um escritório e agem como se ainda estivessem ali, não saem nem mesmo quando a parede de vidro não existe mais.
  • Ociar não significa não pensar, Significa não pensar regras obrigatórias, não ser assediado pelo cronômetro, não obedecer aos percursos da racionalidade e todas aquelas coisas que Ford e Taylor tinham inventado para bitolar o trabalho executivo e torná-lo eficiente.
  • Foi uma cena do filme Beldades no Banho que surgiu a Crick e Watson a hipótese de que a hélice do DNA pudesse ser dupla. Se não gostassem de cinema, talvez tivessem levado muito mais tempo para descobrir a estrutura tão pesquisada. [...] As intuições surgem de exatamente de hibridizações de mundos diversos.
  • Todas as organizações que atualmente produzem bens de serviço e informação são filhas da velha indústria de manufaturas que durante duzentos anos administrou o exército de analfabetos que assumiram tarefas repetitivas. Agora se tenta fazer a mesma coisa com os diplomados e graduados.
  • Uma sociedade é democrática quando os governados podem escolher seus governantes. Mas as empresas, por definição, são hierárquicas, piramidais e autoritárias: seus chefes não são eleitos pela base, mas nomeados pelo topo.
  • As duas bases fundamentais que todas as pedagogias adotaram até o momento, no mundo industrial, foram a do trabalho como dever e uma ética utilitarista, como base para o comportamento. Sob esta ótica, Leão XIII, Taylor e Ford têm muito mais afinidades entre si do que se poderia supor à primeira vista.
  • Hoje, é claro que a necessidade de oferecer aos jovens uma formação ética permanece intacta, mas o princípio utilitarista de uma competitividade destrutiva deveria dar lugar a um princípio baseado na solidariedade de estímulos criativos.
  • Os burocratas têm medo da inovação, os criativos têm medo do imobilismo. As duas posições serão cada vez mais inconciliáveis. Mas vencerão os criativos, porque a sociedade pós-industrial se alimenta de invenções, não tem outra saída, premia a iniciativa e joga fora do mercado o imobilismo.
  • O engenheiro Taylor e o engenheiro Ford tinham como dependentes diretos esquadrões de operários analfabetos. Hoje, pelo contrário, graças à escolarização, o subalterno de um engenheiro é outro engenheiro, às vezes mais atualizado e ágil.
  • A forma piramidal das organizações sempre constituiu um incitamento a comportamentos ditados pela competição implacável, já que nos níveis superiores a oferta de cargos é sempre menor que nos inferiores: os que desejam subir devem acotovelar, passar rasteiras, armar ciladas para eliminar o adversário custe o que custar.
  • A sociedade pós-industrial, pelo contrário, é menos ligada à agressividade, porque sua estrutura tem a forma de uma rede, com um número potencialmente infinito de nós e malhas. A sua organização pode se expandir como um rizoma e as relações dela decorrentes são bem mais paritárias do que hierárquicas.
  • Simplificar significa separar artificialmente, em qualquer sistema, as estruturas das funções, sem levar em conta a recíproca interferência entre elas. Significa limitar-se a observar só a continuidade dos fluxos e a sequência das várias fases. Já acolher e apreciar a complexidade significa, ao contrário, aceitar o seu caráter mesclado, incongruente e descontínuo, valorizando todos esses elementos e considerando-os de um nível superior aos que eram utilizados durante o paradigma industrial.
  • A criatividade é, ao mesmo tempo, heteropoiese e autopoiese: isto significa que adquiro materiais dos outros (heteropoiese), mas os reelaboro dentro da minha mente até chegar a uma visão nova (autopoiese).
  • ... há uma tal interação contínua de ideias, linguagens, informações e experiências que já não é possível saber se uma ideia é nossa ou se a escutamos de alguém. Nós “cuidamos” das nossas ideias, as “produzimos” como se produz um filme ou espetáculo, mas nossas ideias não são um produto só da nossa mente, e portanto não são “nossas”.
  • ... a escolha de uma faculdade universitária que prepara para a vida é mais sábia do que a escolha de uma faculdade que prepara para a profissão. O que conta não é o estresse da carreira, mas a serenidade da sabedoria.
  • Em nenhum outro pais do mundo a sensualidade, a oralidade, a alegria e a “inclusividade” conseguem conviver numa síntese tão incandescente. ”Um povo mestiço, cordial, civilizado, pobre e sensível habita esta paisagem de sonho”, insiste Jorge Amado.
  • É este o lugar: é no Brasil, neste país tão puro e tão contaminado, que eu gostaria de alimentar o meu ócio criativo.

  • MASI, D. D. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

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