27 de nov. de 2010

A história do amor no Brasil

Relações amorosas no País – marcadas, no passado, pela repressão e pela hipocrisia – hoje estão condicionadas à “ditadura do orgasmo”, que impõe o prazer a todo custo, afirma historiadora da USP

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a proibição ao dever do prazer, as relações afetivas na sociedade brasileira desembocaram no que a historiadora Mary Del Priore classifica como “ditadura do orgasmo”. Em seu livro História do amor no Brasil, a professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP investiga o tema desde o Brasil do século 16 até a chamada revolução sexual dos anos 60 e 70, para problematizar o lugar do amor nos dias atuais. “Uma vez que o desejo de sexo termine, as pessoas são incapazes de valorizar outros aspectos da relação e querem simplesmente trocar de parceiro”, afirma a professora. Ou, se não tiverem orgasmo com um parceiro, já nem se casam com ele.”
Mary Del Priore já havia sido premiada pelos livros História das crianças no Brasil e História das mulheres no Brasil. Em uma investida arriscada, seu último lançamento, apesar de trazer um tema que facilmente cairia nas necessidades do mercado editorial, não abre mão da pesquisa histórica séria. A historiadora legitima seu espaço: “Estudar a história do amor segue, aos olhos das severas ciências que nos governam, um grave estigma de ligeireza. Azar o delas”, escreve. E onde encontrar a história do amor? Em cartas anônimas, diários, documentos da Inquisição, processos judiciais e textos literários que compõem um cenário essencialmente marcado pela dicotomia: o amor como prática se firma numa sociedade escravocrata, patriarcal e mestiça, enquanto de outro lado ocorre a idealização de um sentimento sublime.
A formação tardia da vida privada brasileira conferiu algumas particularidades às relações afetivas na Colônia. Se na Europa o quarto íntimo foi o lugar das cenas amorosas, aqui as casas de parede-meia, as cafuas cobertas de capim e as moradias senhoriais repletas de agregados, escravos e parentes não ofereciam muitas oportunidades de vivências íntimas. “Não devemos pensar nossa cultura como a da falta. Ela fez do ar livre o espaço para os encontros amorosos”, afirmou a historiadora. Mas não era só nas praias, matos e roças ao redor das cidades que os casais se encontravam. A falta de iluminação nas igrejas favorecia gestos amorosos nas missas do final da tarde. “Vez por outra, Deus dava licença ao Diabo”, brinca Mary. Paradoxalmente, o rígido controle da Igreja sobre os fiéis favoreceu a invasão do profano no sagrado. As cerimônias religiosas, um dos únicos momentos que não despertavam suspeitas de pais e confessores a respeito de seus filhos, tornaram-se palco de paqueras. Moças se arrumavam para arranjar maridos, homens deixavam cavalos amarrados do lado de fora da igreja para se exibirem.
Maus dias
Até o século 20 os casamentos sempre foram um negócio. Uma mulher sem dotes, por exemplo, não conseguia casar e morava como agregada na casa de algum parente. A idéia que a Igreja estabeleceu do casamento indissolúvel era usada como argumento para a escolha rigorosa do cônjuge, que nunca deveria ser feita com base nos sentimentos. Provérbios da época diziam: “Quem casa por amores, maus dias, piores noites”. Segundo a ética católica, sexualidade associava-se ao pecado e deveria ser permitida somente para a procriação.
A autora segue a tese de Jean-Louis Flandrin, que foi seu professor na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, e para quem dedica sua obra. Segundo ele, a Igreja Católica colocou tantas dificuldades para que as pessoas se gostassem dentro do casamento que o sentimento apaixonado acabou se transferindo para fora dele. “O casamento, então, é o lugar da amizade, respeito, negócios, menos do amor.” Seguindo também os passos de Denis de Rougemont, com base no relato de Tristão e Isolda, Mary expõe uma das concepções do amor como sendo necessariamente infeliz e cheia de dificuldades, na qual a união total dos amantes só se dá na morte. “A herança que a poesia trovadoresca deixou para o Ocidente foi a busca do amor impossível”, escreve.
É somente no século 19 que o amor romântico começa a exercer sua influência, associando amor e liberdade como coisas desejáveis não mais porque quebravam a rotina (como cantavam os trovadores), mas porque traziam a realização pessoal. A historiadora classifica aquele século como “um século hipócrita”, que reprimiu o sexo mesmo sendo obcecado por ele. Foi quando se institucionalizou o bordel no Brasil, que procurava copiar a casa burguesa para que os homens desfrutassem da sexualidade que não existia nos seus lares. “A sexualidade só estava à disposição dos homens. As mulheres continuavam fechadas em casa lendo romances”, aponta Mary.
A sociedade da comunicação do século 20 desatou as amarras que puniam o prazer. Revistas, rádios, cinemas e, depois dos anos 50, a televisão, ficam bombardeados por novas formas de afetividade. O beijo torna-se o emblema do casal apaixonado. O acentuado processo de urbanização cria novos espaços de entretenimento. “Não é mais o calendário religioso que proporciona às pessoas o momento de encontro”, afirma a professora. Nos anos 60, a chegada da pílula anticoncepcional se constitui em uma via para as mulheres se liberarem da obrigação de fazer sexo com o intuito de procriar e permite a erotização de seus corpos. Enfim, chegado o prazer como direito, não mais proibição, a autora aponta para o século 21: “A liberdade excessiva pós-anos 90 nos levou à ditadura do prazer. Temos que nos questionar sobre isso”.


Em seu novo livro, Mary Del Priore reconstitui a história das relações amorosas no Brasil e discute o lugar do amor nos dias atuais: “Uma vez que o desejo de sexo termine, as pessoas são incapazes de valorizar outros aspectos da relação e querem simplesmente trocar de parceiro“

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